Ainda tem vez e voz a ciência?

Por: Shirleyde Santos

 

Um desenvolvimento tão destrutivista
É o que diz aquele que vocês não ouvem
O cientista, essa voz, a da ciência
Tampouco a voz da consciência os comove
Vocês só ouvem algo por conveniência

Reis do agronegócio – Chico Cesar e Carlos Renó

 

É estranho pensar que chegamos ao absurdo de negar a ciência. Sempre tive um pé na ciência e outro bem firme nos saberes populares. Aqui não estou falando sobre a ciência enquanto saber “validado”, mas sobre mais um grave problema revelado em nosso país: a crença em mitos, a disseminação de fake news, a desvalorização da educação, das universidades e de centros de pesquisa, quando vão de encontro ao “deus mercado”, como dizia Eduardo Galeano. Em plena pandemia do COVID, vivenciamos movimentos anti-vacina e o negacionismo esbravejado por governantes com consequências gravíssimas e irreversíveis. Quantas vidas poderiam ter sido poupadas se um simples esquema vacinal tivesse sido iniciado antes? 

Quando grandes interesses são colocados em xeque, a ciência é questionada, perseguida e calada. Isso é tão evidente em relação aos agrotóxicos. Quem pesquisa sobre seus impactos, em geral, também milita por um mundo livre de venenos e acaba sofrendo ameaças, perseguições… Ser militante de alguma causa justa em nosso país é ter um passaporte, sem prazo de validade, para o medo. Já quem defende as grandes empresas e manipula pesquisa para que os resultados sejam divulgados com maquiagens nem sempre discretas, recebe louros, mas perde a tranquilidade. Prefiro estar ao lado dos “fracassados e fracassadas”, como disse Padre Júlio Lancellotti, “se eu tiver sucesso é porque aderi a esse sistema.”

Vi essa semana uma matéria sobre mais uma publicação da pesquisadora Mônica Lopes Ferreira. O trabalho, realizado em colaboração com oito colegas pesquisadores(as) do Instituto Butantã, intitulado “Os impactos dos agrotóxicos na saúde humana nos últimos seis anos no Brasil”, publicado em março deste ano no International Journal of Environmental Research and Public Health, é uma revisão sistemática e se debruça sobre 51 estudos que foram publicados em revistas científicas.

Mônica, imunologista respeitada e com uma carreira já bem estabelecida no Instituto Butantã até publicar, em 2019, os resultados de uma pesquisa em parceria com a FIOCRUZ, que evidenciava que não há dose segura de agrotóxicos. A partir de então foi alvo de perseguições dentro do seu ambiente de trabalho e fora dele. Na época, a repercussão da sua pesquisa foi enorme, incluindo notas desqualificando o seu trabalho e a suspensão por seis meses da submissão de seus projetos de pesquisa para aprovação no Comitê de Ética Animal do Butantan. Essa suspensão ela conseguiu reverter por meio de uma liminar da Justiça. 

Mônica é mais um exemplo de que fazer pesquisa em nosso país é difícil. Principalmente quando aponta como resultados o que deve ficar “debaixo dos panos”, o que vai de encontro aos interesses do “deus mercado”. Quantos(as) pesquisadores(as) ainda serão penalizados(as)? Quantas pesquisas ainda serão censuradas? O recente artigo publicado por Mônica é uma prova da resistência que precisamos. Na matéria, a pesquisadora afirma que “a única forma que conhece de se manifestar é produzindo ciência”. 

A gente quer seguir fazendo ciência. Uma ciência comprometida com o interesse popular e não com o interesse do sistema. O que a gente deseja mesmo é vencer esse sistema. Ver a agroecologia sendo valorizada e estimulada. O país substituindo campos de monocultivo por grandes agroflorestas. A saúde presente na mesa. Mais parques e praças e menos farmácias e hospitais. A cultura sendo valorizada em cada recanto. Sonhadora? Sou sim! Mas não fico só esperando. Tento fazer a minha parte como educadora e esse texto é mais um meio de dar voz ao meu desejo de um mundo com mais amor e menos veneno.

Para ler mais: 

Após censura, cientista faz levantamento inédito de pesquisas brasileiras que expõem impacto dos agrotóxicos na saúde

Pesquisadora vira alvo de perseguições após comprovar que não existe dose segura de agrotóxicos

Lopes-Ferreira, M.; Maleski, A.L.A.; Balan-Lima, L.; Bernardo, J.T.G.; Hipolito, L.M.; Seni-Silva, A.C.; Batista-Filho, J.; Falcao, M.A.P.; Lima, C. Impact of Pesticides on Human Health in the Last Six Years in Brazil. Int. J. Environ. Res. Public Health 2022, 19, 3198. Disponível em: https://www.mdpi.com/1660-4601/19/6/3198/htm

 

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