Por: Dapheny Feitosa
Eu existo em língua portuguesa. E você que me lê também. O que quer dizer que percebemos o mundo à nossa volta a partir e da forma como o nomeamos, pois as palavras carregam histórias.
Nascer em terra brasileira é instantaneamente ser falante de uma língua: a língua portuguesa, que convenhamos já deveria ser a língua brasileira. Poderíamos ser bi, tri, tetra lingue, mas Marquês de Pombal não quis. Achou que a língua de indígena não deveria ser falada em terras brasileiras e em uma canetada só resolveu isso, proibindo o uso do tupi. Canetada ou presepada.
Na última semana, enquanto estava de boca aberta sendo atendida por uma jovem dentista, ela conversava com uma colega e dizia: – pra usar essa ferramenta é um “moído” só.
Eu levei uma fração de minuto para localizar o contexto adequado para a palavra moído. Entre esmagado, triturado ou fatigado e exausto, o mais apropriado ali era “uma situação complicada”. Apesar de recém-iniciada ao jeito paraibano de ser em língua portuguesa, minha bagagem Piauí – Distrito Federal garante certa compreensão rápida. Fiquei curiosa para saber como um tradutor traduziria isso.
Não tem como. Não dá pra se traduzir a existência em língua portuguesa e garantir tudo que ela envolve, parte da poesia, da irreverência, da beleza deve ficar pelo meio do caminho. É só observar como “bico” não se compara a freela, situação que ficou muito clara quando os noticiários internacionais na última semana lançaram-se ao desafio de traduzir “tchutchuca do centrão”. Perrita del Centrao? Putain du Centrao? O RND, jornal da Holanda, traduziu ‘tchutchuca do centrão’ como “queridinho dos políticos caipiras”. Nenhuma das traduções chega perto da irreverência e da imagem que só um falante de língua portuguesa no Brasil consegue acessar, a retomada do bonde do tigrão e da cultura funk, a irreverência que atravessa a ligação entre a expressão usada para nomear a promíscua relação de Bolsonaro e o centrão, e a imagem malemolente (inclusive, agora mesmo, pare e leia pausadamente essa palavra -ma le mo len te-) desse gênero musical irreverente e tão nosso.
O “mas”, uma palavrinha de três letras, pode desmoronar mundos inteiros em língua portuguesa. Por exemplo, na frase “Bolsonaro baixou o preço da gasolina, mas reduziu imposto que vai para educação e paga salário de professores e ano que vem vai ser salve-se quem puder”. O “mas” é estraga prazer. Retirando a gente rapidinho de um lugar quentinho e confortável. “Não sou homofóbico, mas…”. Como eu disse, destruindo mundos. Uma palavra muda tudo. Sempre. Impeachment ou golpe? Ditadura ou revolução? Identidade de gênero ou ideologia de gênero? Uma escolha e tudo no que você acredita agarrada a ela. Indivisível. Inseparável o que somos, o que cremos, das palavras que escolhemos usar, sim, porque a língua portuguesa, assim como outras línguas, disponibiliza sinônimos e outras possibilidades e, por isso, talvez, quando alguém usa “mercado negro” e não “mercado ilegal” ele queira mesmo intencionalmente ser racista e a gente – gente branca – precisa parar de achar que esse tipo de gente não existe.
A língua portuguesa nos situa no mundo anexando uma etiqueta na nossa testa. Uma etiqueta que nos lembra, apesar das tentativas de recusa, que somos latinos, que somos diversos, que nosso território é continental e, por isso, nossa língua não pode ser homogênea. Mas também que fomos o último país do mundo a abolir a escravidão, que misturamos jazz e hip hop e criamos samba e funk, que assimilamos nossa história e realidade com meme e Pantanal. Somos lembrados, portanto, que existimos em língua portuguesa, entretanto somos nós que a fazemos, somos nós que escolhemos, para o bem e para o mal, como usá-la.