Por: Shirleyde Santos
Para ler ouvindo: Povoada (Sued Nunes)
houve o pai houve o marido
paredes de pedra e vidro
e os irmãos e deus
e o padre
precisou muita coragem
para ousar usar
as asas
águia
*líria porto
Venho pensando muito sobre liberdade. Liberdade de ir e vir. Liberdade de expressão. Liberdade de ser. Liberdade de existir e resistir em um mundo cada vez mais perverso com as mulheres. Principalmente com aquelas que mais se aproximam da ideia que a gente imagina de liberdade. Aquelas que se consideram livres e vivem na contramão deste mundo. Ainda mais num país que foi dominado nos últimos 4 anos por discursos de ódio e pela misoginia escancarada.
Fazer parte de alguns espaços tem me instigado cada vez mais a refletir sobre o que significa ser uma mulher que se considera livre. Eu me considero livre e me pergunto todos os dias quando e como comecei a ousar usar minhas asas. Sei que meu percurso é infinitamente mais fácil do que o de várias mulheres que vou encontrando pelo caminho. Isso não o torna mais fácil pra mim. É o meu percurso e o aprendizado é diário.
Na Campanha Contra os Agrotóxicos e Pela Vida desenvolvo ações educativas em diversos ambientes. Já vi pessoas defendendo o uso de agrotóxicos. Já fui questionada sobre a viabilidade da produção agroecológica. Mas, recentemente, pela primeira vez, fui afrontada por um jovem em uma palestra questionando, dentre outras coisas, a relação entre feminismo e a campanha contra agrotóxicos. Expliquei que a campanha milita em duas frentes: a denúncia dos impactos dos agrotóxicos e o anúncio da agroecologia; que agroecologia não se resume a uma substituição de insumos nas plantações; que várias pautas e bandeiras estão presentes em nossa luta, e que sem feminismo não há agroecologia. Falei também que as mulheres são extremamente impactadas pelo uso dos agrotóxicos de diversas formas. Mas ele continuou insistindo com a pergunta como se não estivesse me ouvindo ou, mais provavelmente, numa tentativa de me tirar do sério. Confesso que fiquei muito triste em perceber como um jovem já carrega preconceitos tão arraigados. Um perfil, infelizmente, cada vez mais comum e que nos assusta.
O projeto Mulheres e Territórios Livres, da Associação Brasileira de Agroecologia, com apoio da Fundação Heinrich Böll e parceria com universidades na Paraíba e em Pernambuco, me permitiu conhecer um pouco mais da vida de mulheres que fazem dos seus quintais produtivos um nicho de resistência. Mas também me fez perceber tantas vulnerabilidades que em meu mundo de mulher branca, urbana, hetero, com estabilidade financeira não chego nem perto de vivenciar. Se senti minha liberdade de expressão intimidada por um garoto, não consigo dimensionar o quanto essas mulheres são privadas de direitos, inclusive básicos como à água e ao alimento saudável. E mesmo assim elas carregam um sorriso no rosto e resistem todos os dias a diversas formas de opressão e se transformam, transformam a paisagem, transformam seus quintais e transformam a vida de outras mulheres. Inclusive a minha.
A campanha “As mulheres querem viver sem violência doméstica, sem importunação sexual, sem feminicídio” é uma atividade do Observatório do feminicídio da Paraíba Bríggida Lourenço, da UEPB, que visa produzir em mulheres e homens uma consciência de valorização da vida e banimento de todo o tipo de violência, seja física, sexual ou psicológica. A participação ativa nessa campanha também tem me permitido repensar minhas relações afetivas e de trabalho e perceber o quanto nós, mulheres, somos violentadas. Cada palestra traz uma pecinha e, aos poucos, vou montando um grande quebra-cabeças onde me vejo ora como uma mulher de uma força incrível, ora extremamente vulnerável. O que é potente e, ao mesmo tempo, perturbador.
Na plataforma Nossa Fala encontrei o espaço para escrever e ser lida. Mas, muito além de um espaço de escrita, é um espaço de reconhecimento, onde encontrei outras mulheres que, assim como eu, se sentem vozes, carregam vozes no peito e as traduzem com os dedos ou com a garganta. Não é fácil, porque nesse percurso de representar outras mulheres também nos fragilizamos, porque o tempo inteiro somos forçadas a entender que a nossa liberdade é relativa, que nossos corpos nem sempre nos pertencem, como gostamos de afirmar, que mulher não tem um dia de paz. E que, por mais que encontremos homens solidários e sensíveis em nosso caminho, o mundo tá repleto de outros que se consideram “imbrocháveis”, que vomitam arrogância e prepotência e que, na primeira oportunidade que tiverem, vão tentar nos oprimir e nos violentar. Algumas vezes vão conseguir…
Mas em todo esse percurso, em todos esses espaços, olhamos umas nos olhos das outras, nos acolhemos, choramos e sorrimos juntas, nos damos as mãos, nos abraçamos, nos fortalecemos e seguimos. Que cada uma de nós possa ser colo e casa para outras mulheres todos os dias! Que possamos votar no próximo domingo em defesa da vida! Contra os imbrocháveis! E que nosso país possa voltar a sorrir!
Para saber mais:
https://instagram.com/contraosagrotóxicos
https://instagram.com/mulhereseterritórioslivres
https://instagram.com/aba.agroecologia
https://instagram.com/bollbrasil
https://uepb.edu.br/uepb-e-sociedade/