Por: Dapheny Feitosa
No início do mês, fui até outra cidade fazer uma prova de concurso. O dia da prova amanheceu nublado, com um ventinho frio e eu estava há duas horas de casa. Quando acordei naquele dia, tentei me lembrar do conteúdo que tinha estudado, tomei um bom café da manhã de hotel, conferi caneta, documento e fui até o local da prova. Quando cheguei em frente a minha sala fui arrebatada por uma cena. É que a gente costuma traçar um padrão de normalidade, que pode e deve ser questionado, em situações diversas e o que eu vi ali fugia, sem dúvidas, a normalidade. Um senhor de cabelos brancos deixava sua filha, uma mulher por volta da minha idade, entre trinta e quarenta anos, perguntava se era aquela sala mesmo e a abençoava desejando uma boa prova com um beijo e um abraço.
A cena me atravessou. Eu tenho uma mãe como esse pai, uma mãe que mesmo que eu tenha 37 anos, quis mesmo me levar pela mão no meu primeiro dia de aula no doutorado e na defesa me garantiu olhando nos meus olhos que ninguém teria coragem de me reprovar. Ter uma mãe assim é um lugar conhecido para mim e ainda assim eu estranhei, apesar da comoção, aquele homem naquela situação. Ter uma mãe que me apoia e me ama com demonstrações explícitas, com certeza, contribuiu para a autoestima que tenho hoje, para ter confiança em encarar as situações mais adversas, confiança para, mesmo sendo mãe, não abrir mão dos meus sonhos e projetos. Eu vou, porque ela está sempre me dizendo, olhando nos olhos, que eu posso.
Neste último mês, a Gal morreu, sim, eu escrevo esse texto em um mundo que a Gal morreu. Tenho que escrever e falar em voz alta porque ainda não parece verdade. E não é, porque nunca mais existirá um mundo sem a voz da Gal. Fiquei tão obcecada com isso que assisti tudo que pode sobre Gal no Youtube e descobri que ela sempre quis ser cantora, mas ser cantora naquela época não era uma profissão bem vista, principalmente, para mulheres. Esse mundo que anda, muda e continua sempre o mesmo. Mas foi a mãe da Gal sua maior apoiadora, ela sempre acreditou na filha. Agora, imaginem que se aquela mulher no início dos anos 60, em Salvador, não tivesse apoiado a filha, acreditado nela, talvez, aí sim, nós viveríamos em um mundo sem a voz da Gal.
Eu não sei de onde vem essa ideia de que crianças devem ser criadas com dureza, porque a vida não é fácil, ou que, quando os filhos crescem, já não precisam de colo e incentivos, mas eu sei na pele que crianças amadas e filhos incentivados andam com confiança mudo afora. A gente cria mesmo filhos para o mundo, mas eles precisam saber que podem andar nesse mundo e que quando ele desabar, porque ele vai, há um colo para voltar. Isso é reconfortante demais.
Tenho pensado naquele senhor de cabelos brancos, na sua filha, minha concorrente, na Gal e na mãe dela querendo acreditar na filha e só consigo chegar a conclusão de que só existe criação que deu certo dentro do amor e pode ser que gerações anteriores tenham problemas em dizer “te amo”, mas existem tantas formas de dizer isso. Lembrei que meu avô me esperou na calçada de casa quando fiz vestibular. Era o “eu te amo” dele, “um amor assim delicado”. Para pais, mães, tios ou qualquer pessoa que cria outro ser humano, escuta, diz “eu te amo”, arruma teu jeito, mas diz. Hoje.